segunda-feira, 2 de dezembro de 2013



"As suas lágrimas. São dias inteiros chorando, às vezes enquanto vê um filme ou conversa comigo, enquanto borda, enquanto urina, um riacho ininterrupto rolando pra baixo. Nunca a vi chorar dormindo, mas chora quando a visitam sem que ninguém perceba ou para de chorar quando chega alguém e recomeça imediatamente quando sai. Às vezes fica com a cara péssima, mas em geral tem o rosto neutro. Chora por ser covarde, chora principalmente porque não pode parar de chorar. Não há ventos fortes nem tufões, mas uma monotonia de laguna excessivamente salgada onde os peixes não conseguem sobreviver, apenas alguns sargaços rancorosos e caranguejos pré-históricos. Também quando sorri ou gargalha e posso ver as suas amídalas, também então mergulha nessa laguna. Não há nada fora da sua melancolia, por mais que ela se esforce e diga as palavras que todos forcemos para que diga, e faça isso com extraordinário senso de medida, sem euforia, sem otimismo demais. A verdade é que não está indo a lugar nenhum, não se movimenta propriamente entre um ponto cardinal e outro, marcos de fronteira que seu mundo não inclui. Está sempre em sua laguna de água parada, em seu mar morto e escuro, sem a borda de uma praia. A sua doença pode durar para sempre e o que vivemos até agora transformar-se no prefácio de um livro escuro. A vida inteira assim, quarto, cama, internações, em vez da morte com seu desfecho - sua pá de cal, o muro do seu sepulcro, seus órfãos pequeninos. Ela pode, porque pode tudo, ficar exatamente como está, quietinha em sua laguna, em seu mormaço."

Nuno Ramos

terça-feira, 12 de novembro de 2013


"JOÃO:

Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento? Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas. Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Tereza que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim? Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso? Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves não apenas porque crescem e vivem no ar). Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras? O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda esta gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa... Talvez Teresa... Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum? Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua história, sua poesia? O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar? Donde me veio a ideia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança? Desse mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o único onde me será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa."

Os Três Mal Amados, João Cabral de Melo Neto.

domingo, 15 de setembro de 2013

Lembrei

01001001 00100111 01101101 00100000 01110011 01110100 01101001 01101100 00100000 01101001 01101110 00100000 01101100 01101111 01110110 01100101 00100000 01110111 01101001 01110100 01101000 00100000 01111001 01101111 01110101.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

quarta-feira, 5 de junho de 2013



Afinal, como estipular um preço para um despertar entorpecido e esmagado pelo peso da imensidão do dia? Ou para o barulho das folhas das árvores sob o estímulo do vento? Ou ainda para o fluxo descompassado das pessoas num cenário quase que rotineiro? Como estipular um preço, como transformar em mera mercadoria esses olhos negros, esse par de pequenos oceanos que atravessa o meu coração?

quinta-feira, 30 de maio de 2013



"Nas alturas de nossa embriaguez, ele continuava dizendo que todo mundo é louco, e eu lhe dizia que sim, sim – todo mundo é louco. As pessoas são incompreensíveis, nada é como esperamos que seja. E enquanto observávamos, preocupados demais com a qualidade do metal que encontraríamos sob a terra, no final nos vimos no meio de uma terra que nós mesmos devastamos. A festa tinha acabado então. Pois se todo mundo é louco, eu lhe dizia na volta, com os bolsos vazios, isso nos torna mais loucos ainda."

Thiago Dias.

sexta-feira, 24 de maio de 2013


"Foram montanhas? foram mares?
foram os números...? - não sei.
Por muitas coisas singulares,
não te encontrei.

E te esperava, e te chamava,
e entre os caminhos me perdi.
Foi nuvem negra? Maré brava?
E era por ti!

As mãos que trago, as mãos são estas.
Elas sozinhas te dirão
se vem de mortes ou de festas
meu coração.

Tal como sou, não te convido
a ires para onde eu for.

Tudo que tenho é haver sofrido
pelo meu sonho, alto e perdido,
- e o encantamento arrependido
do meu amor."

Cecília Meireles.

Da Bela Adormecida



                                                    1

"(Há névoa.)
Um beijo seria uma borboleta afogada em mármore.
Uma voz seria raiz perfurando cegueiras.
As paredes unificaram feitios e cores. (Há névoa)
e mesmo as janelas abertas estão fechadas com arminhos
e as soleiras revestidas de musgos, líquens, pelúcias brancas.

E fundiram-se as montanhas. (Há névoa), dissolveram-se no ar os mortos astros.
As areias povoaram-se de avestruzes, ursos brancos, beduínos,
imóveis, sentados, esperando.

(Há névoa.) Entre água e céu invisíveis,
suspendem-se os navios, desfigurados em ouro difuso.
E as árvores encanecem, numa inesperada velhice.
Se uma flor cair, não poderá dizer "Boa noite!" a nenhuma outra,
porque de ramo a ramo, erram distâncias invencíveis.

É assim como entre nós. Figura sem rosto, caminhante do mundo.

(Há névoa.)
Minhas palavras são folhas soltas no ar espesso,
indo e vindo à toa, olhando apenas para si mesmas.

No peso do ar fatigante, remam as minhas mãos e despedaçam-se.
É sempre longe, mais longe. É sempre e cada vez mais longe.
Oh! Se existisse um limite!
(Há névoa.)

Filtra-se por meus olhos a cinza da noite silenciosa.
Caminha pelo meu sangue com o passo pegajoso da sua vida acre.
Pousa em meu coração. Descansa. Adere à minha vida guardada...
(Há névoa.)

E no entanto, em minha memória, ainda existe uma espécie de música!"

Cecília Meireles.

E eu?



quinta-feira, 23 de maio de 2013

Fratura Exposta



"Não dói a ausência. Dói isso que fica. Esse processo penoso que chamamos de luto não é falta, é presença. A chaga, a fratura, o órgão dilacerado, é esse vulto, essa imagem difusa que não nos deixa, a permanência do que não existe mais. O último “eu te amo” dito é um fêmur que se parte em dois e que rasga o músculo. O primeiro segurar na mão dela é a clavícula exposta quando tudo termina. O beijo que você relembra a cada fechar de olhos é um maxilar feito em pedaços."

Marcos Donizetti.

domingo, 17 de março de 2013




"Mas tudo isso é vento que passa. A essência dos suicídios não consistia em tristeza ou mistério, mas apenas em egoísmo. As meninas tomaram nas próprias mãos decisões que deveriam ser deixadas para Deus. Tornaram-se poderosas demais para viver entre nós, absortas demais em si mesmas, visionárias demais, cegas demais. Depois delas, o que permaneceu não foi a vida, que sempre sobrepuja a morte natural, mas uma lista absolutamente trivial de fatos mundanos: um relógio tiquetaqueando na parede, uma sala na penumbra ao meio-dia e o ultraje de um ser humano pensando apenas em si mesmo. O cérebro dela se distanciando de todo o resto mas flamejando em pontos específicos de dor, ofensas pessoais, sonhos perdidos. Todos os outros entes queridos retrocedendo como gelo arrastado pela corrente, encolhendo até se tornarem pontos negros agitando os bracinhos, fora do alcance dos ouvidos. E então a corda presa na viga, o remédio para dormir colocado na palma da mão junto à linha da vida comprida e mentirosa, a janela escancarada, o forno ligado, enfim. Elas nos fizeram participar de sua própria loucura, porque não conseguíamos deixar de refazer seus passos, repassar seus pensamentos, e ver que nenhum deles conduziam até nós. Não conseguíamos imaginar o vazio de uma criatura que encosta uma navalha nos pulsos e abre as veias, o vazio e a tranquilidade. E tivemos de esfregar os focinhos nos últimos rastros que elas deixaram, as marcas de lama no chão, as malas que serviram de degrau, tivemos de respirar para sempre o ar dos cômodos onde elas se mataram. No fim não importava quantos anos elas tinham ou que fossem meninas, mas apenas que as amamos e que elas não nos ouviram chamar, e ainda não nos ouvem, aqui em cima na casa na árvore, com cabelos rareando e barrigas moles, chamando-as para fora dos quartos onde entraram para ficar sozinhas para sempre, sozinhas no suicídio, que é mais profundo que a morte, e onde nunca encontraremos as peças para montá-las outra vez."

Jeffrey Eugenides.

quarta-feira, 13 de março de 2013




"a uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que bruma

uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos como se
se faz essa história
que se chama eu e você."


Paulo Leminski, 1988. 



"Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou 
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um adeus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito rocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui"

Paulo Leminski, 1968.






"tão longe eu lhe disse até logo
um pouco de tudo passou-se outra vez
e foi uma vez toda feita de jogos
aquela outra vez que não soube ser vez
pois voltou e voltou e voltou
sem saber que de duas uma
nunca são três"


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Maio 1959 

Carta a Mondrian 

"Hoje eu me sinto mais solitária que ontem. Senti uma enorme necessidade de olhar o teu trabalho, velho também solitário. Dei com você numa foto fabulosa e senti como se você estivesse comigo e com isso já não me senti tão só. Talvez amanhã possa dar também de meus olhos, de minha solidão e de minha teimosia a alguém que será um artista como eu ou talvez mais ainda, como você. Não sei para que você trabalhava. Se eu trabalho, Mondrian, é para antes de mais nada me realizar no mais alto sentido ético-religioso. Não é para fazer uma superfície e outra... Se exponho é para transmitir a outra pessoa este "momento" parado na dinâmica cosmológica, que o artista capta. Você que era um místico deve quantas e quantas vezes ter vivido
"momentos" como esse dentro da vida, ou não? 
Dizem que você detestava a natureza - é verdade? Pois eu senti hoje essa transcendência através da natureza, na noite, no amor - como você poderia ter raiva da natureza? Você não acha que a obra de arte é o produto de duas polaridades, que é a dinâmica da vida humana? Você estava preso à terra tão profundamente e o vôo no sentido da verticalidade era sua medida? 
Pois a natureza me alimentou, me equilibrou quase que de uma forma panteística. Mas com o tempo, numa outra crise, já isto não adiantou e foi o "vazio pleno", a noite, o silêncio dela que se tornou a minha moradia. Através deste "vazio pleno" me veio a consciência da realidade metafísica, o problema existencial, a forma, o conteúdo (espaço pleno que só tem realidade em função direta da existência dessa forma...). 
Mondrian: você acreditou no homem. Você fez mais: num sonho utópico, estupendo, pensou em eras vindas em que a própria vida "construída" seria uma realidade plástica... 
Talvez isto te salvasse da tua própria solidão. Pois eu, meu amigo, não sonho porque não acredito. Não por excesso de realismo mas para mim o coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social. Se o homem não pode sentir como é importante esse desenvolvimento interior - chamemos de uma forma que nasce com a pessoa como um punho fechado, talvez se abrindo no primeiro tempo com o próprio nascimento - então ele jamais poderá atingir sua plenitude como a rosa que se abre dentro do seu próprio tempo e morre amorosamente realizada, inteligente e feliz... 
Mondrian, um segredo eu vou contar: às vezes, eu me sinto tão desesperada, porque no momento em que "checo" este problema a solidão, o frio, "o medo do medo" me envolvem com todos os seus braços e procuram fechar este novo tempo que desabrocha na minha forma interior, amassando pétalas frescas e delicadas que levarão novo tempo para se abrirem como se abre um olho devagar, depois de ter levado um bom murro. 
Mondrian, se sua força pode me servir, seria como o bife cru colocado neste olho sofrido para que ele veja o mais depressa possível e possa encarar esta realidade às vezes tão insuportável - "o artista é um solitário". Não importam filhos, amor, pois dentro dele ele vive só. Ele nasce dentro dele, parto difícil a cada minuto, só irremediavelmente só. Você seria talvez a chuva que molha a flor que nasceu na areia ou no asfalto, se você prefere, pois é cidade e não natureza. 
Você hoje está mais vivo para mim que todas as pessoas que me compreendem, até um certo ponto. Sabe por quê? Veja só se tenho razão ou não. Você já sabe do grupo neoconcreto, você já sabe que eu continuo o seu problema, que é penoso (você era homem, Mondrian, lembra-se?). No momento em que o grupo foi formado havia uma identificação profunda, a meu ver. Era a tomada de consciência de um tempo-espaço, realidade nova, universal como expressão, pois abrangia poesia, escultura, teatro, gravura e pintura. Até prosa, Mondrian... Hoje a maioria dos elementos do grupo se esquecem desta afinidade (o mais importante) e querem imprimir um sentido menor a ele, quando preferem que ele cresça sem esta identidade para mim imprescindível, numa tentativa de dar continuidade superficial a este movimento. Você bem sabe que, no cubismo, as formas foram várias mas, no sentido mais profundo que era esta nova realidade espacial, foram respeitadas. Só o tempo a meu ver traria continuidade real a este movimento. 
Agora, velho, simpático mestre, diga-me com toda franqueza: meu desejo é deixar o grupo e continuar fiel a esta minha convicção, respeitando a mim mesma, embora mais só que ontem e hoje, eu serei amanhã, pois as pessoas que se aproximaram um dia, há bem pouco tempo, se afastam desorientadas sem enfrentarem a dureza de estar só num só pensamento, sem resguardar o sentido maior, ético, de morrer amanhã, sozinha mas fiel a uma ideia. Diga, meu amigo: é duro, é terrível porque é deixar de ter, mesmo sem me afastar realmente do grupo, pois já se fragmentou a unidade, a verdade dura e terrível feita a sete para se multiplicar em realidades pequenas - reconfortantes por certo, às centenas. 
Hoje eu choro - o choro me cobre, me segue, me conforta e acalenta, de um certo modo, esta superfície dura, inflexível e fria da fidelidade a uma ideia. 
Mondrian: hoje eu gosto de você."

Lygia Clark.

"(...) os descompassos entre arte e vida"



"O que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade. Sei que se trata, no fundo, do seguinte problema: a vida imediata, aquela que sofro, e dentro da qual ajo, é minha, incomunicável, e portanto sem sentido e finalidade. O reino dos símbolos, que procuram captar essa vida (e que é o reino das linguagens), é, pelo contrário, antivida, no sentido de ser intersubjetivo, comum, esvaziado de emoções e sentimentos. Se eu pudesse fazer coincidir esses dois reinos, teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalidade do símbolo." 

Mira Schendel.

"Rika, in spite of everything, the days flowed by and got faded, like the colors of this postcard... Everytime we think about being happy again, it hurts to be alive. Because it seems an inordinate thing for us to wish for. And because we think that day never come for us. And that's why the only thing we can do for now is just try to get through each night. Just as this girl has helped me come this far, I pray that the young man who's by you now will carry you over to tomorrow."

Shuu-chan. ♥


"Museu é o mundo"




"Hélio falava sobre o "Delirium Ambulatório", uma espécie de movimento criativo que ele desenvolvia em suas caminhadas pela cidade, principalmente pelo centro do Rio de Janeiro, passando pelo Mangue, entre a Central do Brasil e o Morro da Mangueira, que o levava aos mais variados vislumbres sobre formas de novas obras. Nessas caminhadas criativas, ele sempre levava um bloco de fichas, que chamava Index Cards, onde anotava os detalhes para seus projetos. Como um explorador em um grande labirinto, Hélio se deslocava no espaço urbano, fosse de ônibus ou a pé, reconstruindo o mundo como um grande quebra-cabeça, a ser esmiuçado e reinventado, como em seus Núcleos, em que retira a pintura da prisão bidimensional e a joga no espaço, como quem quer revelar a sua essência, enquanto cor, tempo, estrutura e obra diretamente conectada à vida.
Quando criança, Hélio decorou todo o Guia Rex da cidade do Rio de Janeiro. Ele conhecia as diversas linhas de ônibus, inclusive todos os seus pontos. Daí, inventou uma brincadeira chamada "motorista de ônibus", que parava em todos os pontos, segundo suas sequências em cada linha. Mais tarde, ele imaginou uma cidade, a qual chamou de Segunda Parte de Belo Horizonte, e fez dela uma imensa planta. Essas histórias, mais que meras curiosidades, nos levam a entender sua forma de pensar, desde criança até seus últimos trabalhos.
Assumindo sempre uma posição de observador, ele se debruça com intensidade sobre determinado mundo e o disseca, de tal maneira que pode dominá-lo totalmente, a ponto de desmontá-lo, dando a ele uma nova feição. Sua visão anárquica não se contenta com fórmulas prontas. Na verdade, a desmontagem de alguns preceitos, tidos como rígidos e institucionalizados, nos revela sempre um novo mundo, uma nova possibilidade.
Em sua práxis, Hélio trabalhou como um inventor que constrói suas obras a partir de descobertas, geradas em sua vivência diária, seja no Morro da Mangueira ou no contato com a obra de grandes mestres, como  Klee ou Mondrian, e reveladas em profundas pesquisas plásticas, sensoriais e culturais. Então, inicia um processo de mitificação, seguido pelo de "desmitificação", quando se apropria de certas formas que, muitas vezes, reconstrói adiante em arte. "Desmitificação", aliás, foi um conceito caro para Hélio nos seus últimos anos, como podemos ver em suas últimas entrevistas, onde ele ressalta o seu processo de desmistificação como uma maneira de desconstruir mitos."

César Oiticica Filho.

sábado, 23 de fevereiro de 2013



"Era preciso avisar as pessoas dessas coisas. Informar que a imortalidade é mortal, que pode morrer, que aconteceu e ainda acontece. Que ela não se mostra enquanto tal, nunca, que ela é duplicidade absoluta. Que ela não existe no detalhe, mas apenas como princípio. Que algumas pessoas podem acolher essa presença da imortalidade, desde que não se deem conta disso. Assim como algumas outras pessoas podem perceber essa presença nos demais, com a mesma condição, desde que não se deem conta disso. Que a vida é imortal enquanto vive, enquanto está em vida. Que a imortalidade não é uma questão de mais ou menos tempo, não é uma questão de imortalidade, é uma questão de uma outra coisa que continua desconhecida. Que é tão falso dizer que ela não tem começo nem fim quanto dizer que ela começa e acaba com a vida do espírito, pois é do espírito que ela participa e busca do vento. Olhem as areias mortas dos desertos, o corpo morto das crianças: a imortalidade não passa por ali, ela para e contorna."

Marguerite Duras.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

“Não se deve enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranquila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-mos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segunda a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.

Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: tem que aprendê-lo.

Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O Amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. Do Amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite a trabalhar em si mesmos. A fusão com o outro, a entrega de si, toda a espécie de comunhão não são para eles, são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.

Aí está o erro tão grave e frequente dos jovens – cuja natureza comporta o serem impacientes – atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre ele e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois? Que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam de comunhão e facilmente chamariam de felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e perde ao outro e a muitos outros que ainda queriam vir.

 [...]

Na medida, porém, em que começarmos a tentar, solitários, a vida, estas grandes coisas se hão de aproximar da nossa solidão. As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverarmos, apesar de tudo, e aceitarmos esse amor como uma carga e uma tirocínio em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência – então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós – e isto já será muito.

 [...]

Esse progresso há de ser transformar radicalmente (muito contra a vontade dos homens a quem tomará a dianteira) a vida amorosa hoje tão cheia de erros numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. E esse amor mais humano (que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta, num atar e desatar claro e correto) assemelha-se-á àquele que nós preparamos lutando fatigosamente, um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões.

Ainda mais: não pense que o grande amor que fora imposto na sua adolescência se tenha perdido. Não terá sido então que amadureceram em si grandes e bons desejos e propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Creio que aquele amor persiste forte e poderoso em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão profunda e o primeiro trabalho interior que moldou sua vida“.

Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta. Um dos livros mais marcantes e importantes da minha vida, indicado por uma das pessoas mais marcantes e importantes da minha vida. ♥
"[...] A petrificação dos sentimentos diante da força do outro, descobrir, sob o rosto calmo da mãe, uma torrente, um vulcão, ou pior, uma ausência, o gelo que já não se move e que nos faz berrar, gritar de medo."

Trecho da fala de Marguerite Duras, em uma entrevista concedida a Sinclair Dumontais.

"[...] Não havia uma brisa sequer, e a música havia se espalhado por todo o paquete negro, como uma imposição dos céus que não se sabia a que se referia, como uma ordem de Deus cujo teor era desconhecido. E a jovem tinha se levantado como se estivesse indo por sua vez se matar, por sua vez se lançar ao mar, e depois havia chorado porque tinha pensado naquele homem de Cholen e de repente não tinha certeza se não o havia amado com um amor do qual não se apercebera porque ele tinha se perdido na história como a água na areia e agora ela só o reencontrava nesse instante em que a música se lançava ao mar."

Marguerite Duras.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

sábado, 19 de janeiro de 2013

"Provo então o gosto agudo da laranja, ativando regiões próximas ao que restou dos dentes de siso, penetrando o tímpano mais que o palato, arrepiando mesmo a raiz do cabelo mas principalmente lavando a imersão esponjosa da noite, o mau hálito que guarda intacta a tumba do sono, afastando intrusos. Em seguida o café com leite e pela janela aquele comércio entre pombos, penas e arrulhos, as crianças já foram para a escola e quem é que está aí dentro, suas primeiras pontadas, como um desânimo diante da imensidão do que se tem pela frente, da sucessão numérica de banalidades que vão constituir aquele dia - posso sentir as patinhas da minha centopeia. Meu cansaço. É quase com conforto que volto a ele, como quem veste um sapato velho."


Meu cansaço, Nuno Ramos.

"É estranho estar cansado já na primeira hora, mas é isto que me põe no dia, a capa protetora de me saber cansado. Vou tentar falar disso com minúcia: quando acordo parece um enorme pesadelo, uma voz murmurando eu não mereço isto, ou eu preciso fugir daqui, ou alguma fantasia de façanha sexual, prêmio ou grana, enfim: suborno. Mas logo a minha voz parece a mesma de ontem, a minha cara é aquela de sempre e todo o mundo acredita, eu primeiro que todos, e deixo os meus segredos para um repasto bovino e solitário que acabo naturalmente esquecendo, escovo os dentes, visto o meu filho menor, despejo o leite na xícara do do meio. Então fico sozinho, ela ainda dorme, ela pode dormir sempre que quiser porque está convalescendo, então fico sozinho, a primeira manhã já passou, tenho apenas mais alguns minutos antes de entrar no palco e dar bom-dia a uma dúzia de pessoas. É então que meu cansaço vai subindo por minhas mãos, esponjosas por ele, desde o cheiro da tinta do jornal ou do sabor agudo da laranja. Ele soletra: anda, alongando o tempo dos meus passos, respira, diminuindo meu fôlego. E quando perguntam como vai eu respondo bem, mas na verdade sei que estou cansado, gordo do meu cansaço, inflado pelo gás viscoso do meu cansaço. Desempenho as minhas tarefas como um espião atuando em outro país, a serviço dele, desse forro duplo dentro da vestimenta onde carrego a mercadoria secreta da minha tristeza, da minha vontade de desistir.
Mais do que tudo, no entanto, meu cansaço me afasta dela. Ela que pode tudo (porque está convalescendo), só pode ser freada pela minha morte. Na ausência disso, por uma doença minha mais séria do que a dela. Na ausência disso pela minha raiva ou mau-humor (agudos, mas breves). Na ausência disso pelo meu cansaço. Posso deixar que fale de si mesma durante um mês inteiro, que quase tome o número necessário de medicamentos para morrer, que corte a própria pele durante o banho, tingindo a espuma de vermelho, que chore durante toda a tarde, acompanhando a queda do sol, que durma 48 horas seguidas porque estou cansado, estou muito cansado, há uma câmara de cortiça dentro de mim onde toda essa confusão se aquieta."


Meu cansaço, Nuno Ramos.
"Então estou pronto, posso sonhar como um copo que transborda, a tinta escura da noite encharcando o chão do meu quarto. Agora não há palavras, nem imagens, nem cansaço, mas uma realidade aflita onde tudo sou eu, metamorfose monótona de um único animal espalhado em tudo, por tudo, em todos, por todos. Este animal sou eu. Disso não posso falar, nem julgar - meus sonhos, desterro destemperado em que acreditei ser um mendigo, e acreditei ver um poste, e provei de um fruto doce, e acreditei ser eu mesmo. Apenas parece curioso que toda essa quantidade oceânica de água em vai e vem, calmaria ou tempestade em que me transformei se afunile subitamente de volta neste mesmo antigo corpo, pobre e moribundo (porque se eu morresse nem perceberia), meu corpo restituído ao seu centro de motivações e explosões musculares, iniciando uma vez mais, com a chegada do dia, que me acorda afinal, a busca do próprio cansaço."



Meu cansaço, Nuno Ramos.
Em quais instantes eu me aproximo de alguém? Por meio de quê? De palavras, de um bocejo que sucede outro, de vozes refletidas em olhares?


 "Desejo boiar. Abro meus braços. Movo lentamente os pés porque se fico imóvel afundo, mas sinto como se estivesse usando um truque ilegal. Queria boiar imóvel, como aquele gordo ali. De toda forma estou dentro, repousado, sentindo a estranha espessura do que me sustenta. Não é como boiar na água doce e límpida de um lago - o mar vive, respira, encrespa, espalha seus humores desde a borda de outro continente. Talvez seja a escala do seu corpo comparada à do meu que me descanse - além do sal, que me ajuda a boiar. Escapo à sequência naturalizada mas descontínua da vida em terra firme e me deixo durar sem pedaços. Ouço o rumor dos gritos de duas crianças, o motor de uma lancha vindo de dentro da água mas estou preservado do que haveria de estímulo nisso. Durmo sem sonhos, escama pequena de um dragão imóvel, afundado em minha leveza como uma pedra em seu peso. 
É assim, como se retornasse de uma longa viagem da qual já não lembro nada que me aproximo de você, mar remoto mas íntimo, alheio mas meu. Tenho um sentimento agora de que mereço você - depois de tudo o que passei, mereço pelo menos você. Afundo meus pés em tua areia gelada, vejo as marcas que deixei. Me deixo engolir pela onda num mergulho assustado, ponho a cabeça para fora para respirar, já tomado. Já fui tomado. Você não poupa ninguém. E quando volto para casa, para a solidez estranha da parede, da telha, da madeira e do chão, penso numa carta que gostaria de enviar a você. Não através de você, tentando alcançar uma outra praia dentro de uma garrafa, mas a você mesmo, lançada em tuas ondas, no meio delas, em papel comum que a tua espuma logo vai dissolver."



Meu mar, Nuno Ramos.