sábado, 31 de dezembro de 2011

De onde eu vim
Não tem mar
Onde eu vim parar?

Atraquei
Nesse cais
Por amor demais

"A enorme maioria dos médicos que visitei nos últimos tempos me disse para eu procurar um analista e não um médico. Sim, doutor, eu sofro demais, choro demais, sinto demais, sou intensa demais, diferente demais. Mas, independente de quanto sofro com as coisas, ou com que coisas, esta sou eu.
Para curar qualquer problema, era preciso parar de lutar contra mim mesma. Era preciso me aceitar, me descobrir, me pesquisar, me amar e me fazer cada dia mais feliz.
Na situação em que eu vivia, era cômodo colocar a culpa nas circunstâncias: "Estou infeliz porque não moro com quem amo" ou "Estou infeliz porque não posso fazer o que quero na hora que eu quero". Então tomei coragem e fui ver de perto. Eu me juntei com meu broto, passei dias sozinha, fiz o que queria na hora em que dava vontade. E deparei comigo mesma. Deparar consigo mesma parece uma maravilha do crescimento. Pois nascemos ouvindo milhões de regras, deveres, morais... E viciamos o olhar e o coração para fora. Mas por que não para dentro, se a único coisa que realmente temos é a nós mesmos?
Enfim, lá estava eu, com tudo o que tanto pedi e reclamei, e mesmo assim ficava triste. E fiquei impressionada ao perceber que criei outras infelicidades. Mas foi só quando parei de me questionar e de me julgar que minha vida melhorou. É preciso atender às nossas vontades só pelo fato de viver com prazer. É claro que temos que lidar com milhões de obstáculos que parecem impedir a realização de um desejo. Mas é essa a graça do jogo: um caça-ao- tesouro da felicidade. É desenvolver e exercitar de olhar em volta e aproveitar o que tiver. É limpar a vista e desobstruir os caminhos rumo à alma. É tirar a poeira das inseguranças alheias, as barreiras dos protótipos de felicidade e virar um pesquisador de si mesmo. E, quando menos esperamos, vem aquela sensação plena, o coração fica maios, e lá vem ela, tão linda: a felicidade. E ela estava bem ali, tão perto que não vimos. Ela está bem aqui, no primeiro ponto de todos: nós mesmos."

Mallu Magalhães Fofa

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011


aquela timidez linda.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

sábado, 24 de dezembro de 2011

Ainda

" - Senhor desconhecido, esqueçamos os gracejos, está bem? Diga-me, antes, a verdade: o que fazemos aqui?
Debrucei-me, aproximando-me ainda mais, como se quisesse que minha cabeça encostasse na sua, que minha vida encontrasse a sua ou, pelo menos, que ela sorrisse. Tolamente, pensei no mesmo instante que, se não o conseguisse, minha vida inteira estaria estragada:
  - Quer, então, saber o que fazemos aqui. Poderia responder, simplesmente, que os dois tentamos transformar um encontro aparentemente fortuito em uma história que pode perfeitamente, com alguma sorte, se estabelecer sob o signo do destino, que tem mais imaginação do que nós.
A jovem confeiteira sabia ouvir muito bem. Em silêncio, parecia recolher minhas palavras, antes de decidir se encontraria logo um lugar para elas no livro da sua vida. Depois, se sacudiu:
  - Chamam-me Liatt. - disse.
Meu coração deu um salto: não havia dito "chamo-me", mas "chamam-me". Nunca conhecera qualquer mulher com aquele nome. É uma palavra hebraica. Significa: és minha. Repeti:
  - Li-att.
Finalmente, como se parasse de resistir, seu rosto oval e belo, com traços harmoniosos, se iluminou com um sorriso.
  - Poderia lhe dizer meu nome próprio, aquele que sempre usei até agora. Mas, somente para a senhora , gostaria de inventar um novo.
Ela aguardou. O sorriso pareceu se aprofundar. Reconciliava tristeza e alegria, fervor e graça, nostalgia do passado e cumprimento do instante. Febrilmente, procurei entre os nomes bíblicos, proféticos e talmúdicos, um nome especial, singular, único, que refletisse o momento que eu acabava de viver e aquele que viria.
Olhei-a intensamente, esperando encontrá-lo nela. Assim, já que me presenteara com Liatt, lhe ofereceria meu novo nome:
  -E, então? - disse. - O tal nome, encontrou? Estou esperando.
Eu gostei de vê-la esperar.
- Um nome. Hebraico, como o seu. Uma sílaba: Od.
- Que significa o quê?
- Tem dois sentidos. Od com um ayin quer dizer: ainda. Com um aleph, a palavra poderia significar: obrigado, eu agradecerei.
Estaria emocionada? Ela pegou minha mão e disse:
- Ainda.
Há muito tempo não me sentia tão transtornado.
Nem tão aflito.

domingo, 27 de novembro de 2011


"Os olhos de Maya eram escuros, pelo menos era o que eu achava. Em minha vida, nunca vira nada semelhante. Quem quer que os olhasse mergulhava como em um rio em que tudo remete ao sonho e à aventura.
 Não esqueci aqueles olhos; jamais os esquecerei. Insisto nisso, pois, mesmo que me enganasse, parece-me importante para a história: eram risonhos, de um azul-negro singular, irregular, ao mesmo tempo perturbador e calmante. Azul-escuro, como uma noite de primavera no oceano, ou o azul acima do deserto. Por um momento, pareciam queimantes a ponto de causarem mal; depois, sem se alterarem, sem qualquer transição, sob as finas pálpebras, abriam-se como uma oferenda. E tinha-se vontade de escrutá-los ainda e ainda, acariciá-los com o olhar, sobrecarregá-los com algum sentido secreto, abrasá-los. O que os poetas e romancistas dizem a respeito dos olhos e de seu poder é, ao mesmo tempo, verdade e mentira. Espelhos da alma? Janela para o inconsciente? Sim, sem dúvida. Mas os de Maya eram mais, muito mais: reviravam-nos o estômago e retorciam as vísceras. Dissesse-me uma palavra enquanto me olhava, e eu estava pronto a levá-la até os confins da Terra. Apanhasse-me a mão, e eu deixaria a morte me tragar para a felicidade última com a qual não se transige.
 Por sua causa, o azul permaneceu minha cor preferida.
- O senhor me olha e eu o olho - ela disse, com seu pequeno sorriso no canto dos lábios. - Isso basta para imaginar o possível e até mesmo vivê-lo, não acha?"
"- Você olha para mim e eu tenho vontade de sorrir - repetiu em seu iídiche melodioso.
E eu de chorar."
"- Conte-me uma história - pediu Maya, com seus olhos azuis se tornando mais azuis do que o céu.
 - Uma história? - espantei-me um pouco. - Aqui? Agora?
 - Por que não? - replicou com um ar sério. - Haveria um momento especial para as histórias?
Eu podia responder que sim, há um momento para as histórias que se revelam e um outro para as que ficam abafadas na sombra; um tempo para as lágrimas e um outro para as cantorias, embora as lágrimas possam se deslocar para as cantorias.
 - Uma lembrança serviria?
 - No lugar da história?
 - Por que não?
 - Prefiro as histórias. As lembranças muitas vezes são tristes.
 - E as histórias, não?"



"Quando dois destinos acenam um para o outro, doutora, os deuses sempre intervêm. Eles aplaudem ou se zangam."
"Então, estar louco, o que é? Começar uma história, ou uma frase, e não terminar? Inventar uma existência que não se viveu, ou amar uma pessoa que se amou em outra vida? Seria isso agarrar-se a desejos insatisfeitos? Ter a cabeça em chamas e o coração gelado de vapor? Viver nos confins do tempo, em um país em que tudo está organizado, como outros vão viver e dançar no fim do mundo?"
"Minha vida, então, se tornaria uma lágrima?
E daí? Que ela faça o oceano transbordar."


"Mas, depois? Eis a tragédia do homem: há sempre um depois."
"- Eu tenho medo, e quando não sinto medo, tenho medo de não ter medo."
"Acabou que tudo confundiu você. E, assim, você esqueceu o essencial: para o homem que procura aliviar a sede na fonte, a inteligência e a paixão não são imposturas? Para que o homem se cumpra no êxtase ou na queda, ele precisa se agarrar ao presente. Apesar de fugaz, o instante conserva a sua eternidade própria, assim como o amor e até mesmo o desejo concebem seu próprio absoluto. Se você aspira metamorfosear o ser e o tempo, e as relações que os unem, acabará tornando seu um pensamento platônico que, afinal, afasta o homem do seu destino, deixando-o no terreno vago, brumoso e entulhado, primeiro do descrédito, depois da demência. Nesse universo ambíguo, cheio de maquinações e fanfarronadas, a força reside no ato de forjar a própria lucidez, aprisionar a própria verdade. Quem ama, cria ou recria, nem que seja no tempo de duração de um piscar de olhos, já conquistou uma vitória sobre a absurda fatalidade."




I want to know how many scars you have 
And memorize the shape of your tongue
I want to climb the curve of your lower back
And count your vertebrae
                   your ribs 
                   your fingers
                   your goose bumps
I want to chart the topography of your anatomy
And be fluent in your body language
I want you, entire.
http://www.youtube.com/watch?v=Z6WtvPX87s8
"- Uma lembrança verdadeira ou sonhada? - perguntou, de forma totalmente séria. - Um verdadeiro sonho pode facilmente virar lembrança - disse. - Um caco de lembrança, um fragmento de sonho bastariam? - Vou me contentar até com um fragmento de fragmento."

terça-feira, 8 de novembro de 2011

" - Aparentemente, Doriel, o silêncio lhe agrada. Isso acontece. Há pessoas assim. Desistiram da palavra. Sem esperanças na linguagem, escolheram o mutismo. Como finalidade ou como meio? Não é a mesma coisa. Como meio, o silêncio pode durar indefinidamente. Nesse caso, ele se explica e se traduz pela recusa da linguagem, que é uma outra forma sua. Mas como finalidade, ele implica a palavra, se ele quiser se aprofundar e se justificar."

pequenezas



"E a senhora? Conhece Nietzsche? Não o filósofo, nem o poeta, mas o psicólogo. Em algum lugar, ele disse que o principal inimigo do homem é ele próprio: a senhora também pensa assim? Teme que esse inimigo vença as suas resistências e triunfe sobre suas esperanças? Nunca teve medo, sim, medo, de se ver desarmada diante de adversários invisíveis, em um universo hostil, onde qualquer possibilidade de vitória está previamente descartada? Medo de não compreender mais, nem aceitar o que acontece, tanto de bom quanto de ruim? Alguma vez já se sentiu bruscamente desligada de tudo a seu redor, separada dos seus semelhantes, lançada no abismo pelas pessoas que a amavam ou que a senhora amava? Em outras palavras, doutora: alguma vez já teve medo de perder as suas referências, perder o juízo?"

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O monstrinho sempre volta.

escif

Entrevistador: Antes de falar sobre Midnight in Paris, tenho duas questões que se referem especificamente ao Brasil. Uma delas diz respeito à sua descoberta de Machado de Assis. Como isso aconteceu?
Woody Allen: Devo a uma fã brasileira que me mandou um e-mail falando de Machado, de Memórias Póstumas De Brás Cubas. Ela me recomendava que lesse o livro. Tinha certeza de que não iria me decepcionar. E não me decepcionei! O livro é sutil, divertido, inteligente, mas acima de tudo o que me encantou foram a sua ironia e a sua modernidade. Machado refletia sobre o próprio trabalho de uma forma contemporânea. Nesse sentido, Brás Cubas é completamente moderno. Poderia ter sido publicado na semana passada."


:)

sábado, 29 de outubro de 2011

"Já foi dito vezes suficientes que é impossível explicitar o objetivo de uma obra de arte através de palavra. Apesar de uma certa superficialidade com que esta asserção é posta e, em especial, explorada, é, de maneira geral, correta e assim permanece até numa época de grande educação e conhecimento da língua e do seu material. E esta asserção - abandono agora a esfera do raciocínio objetivo - é também correta porque o próprio artista nunca consegue abarcar ou reconhecer totalmente o seu próprio objetivo."

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"The most important thing was not comfort but the conflict taking place in what i was doing, in what i was searching for and in what i still do now."


Herbert Baglione.


this

http://hyperallergic.com/38778/occupying-the-walls-graffiti-as-political-protest/?wt=2

domingo, 16 de outubro de 2011

"Nunca senti inveja das antigas namoradas do Yasu e nem da Nana, que é protegida por ele. Mas invejo a Satsuki, que sempre teve o Yasu ao seu lado desde pequena."



eu também, ai yazawa, eu também :(
"- Como é que você definiria a arte, a função da arte?
Ferreira Gullar: Seria pretensão minha querer definir isso, mas eu digo que a arte existe porque a vida não basta. A arte existe porque o homem quer mais. Ele quer ser feliz, ele quer beleza, ele quer fantasia... Então ela intui esse papel na vida.
Quando eu digo que a arte inventa a vida - ela não revela a vida, ela inventa - é porque ela tem uma linguagem que pode reinventar a vida, porque nada do que você espera é igual a realidade. É mentira que a literatura revela a realidade. Revela o cacete, ela inventa a realidade."
"Você ganhou em sofrimento, em poesia; a melancolia de suas composições penetra o mais íntimo dos corações. Pode-se estar só com você em meio da multidão. Não é um piano, é uma alma..."

(Marquês de Custine para Chopin)
"Ele amava-a tanto, era-lhe tão fiel, tão acorrentado a seu lado, falava dela com tanto respeito, que tudo isso teria sido a glória de uma mulher vaidosa. Ainda assim, Lucrécia não odiava qualquer mulher suficientemente para desejar-lhe esta sorte de felicidade.
Se ela aspirasse o perfume de uma flor, se apanhasse um seixo qualquer, se capturasse uma borboleta para a coleção de seu filho Célio, se fizesse festas a um cão, se colhesse uma fruta, ele diria, entredentes: "Que natureza esquisita! Tudo lhe satisfaz, tudo a diverte, tudo a envenena. Encontra beleza, perfume e graça nos menores aspectos da criação. Tudo admira e tudo ama. Portanto, não ama a mim. Um abismo separa-nos."
"Refuginado-se nessas regiões tão áridas, ele buscava encontrar, nas emoções da arte, serenidade para seu espírito torturado, o esquecimento que "conjura os tumultos da alma", entorpecendo de tal forma a memória, que aí nada mais restará."

terça-feira, 4 de outubro de 2011

"Em silêncio, vi-me pensando que, para cada ser, o outro não é apenas um caminho, mas também uma encruzilhada."
"Por isso acredito que, se devemos, às vezes, responder ao riso com o riso, nem por isso devemos responder ao absurdo com o absurdo, à incompreensão com a renúncia."
" - Sinto-a perto de mim, Maya. Gosto do seu íidiche melodioso e da ideia de o seu saber envolver o meu e me tranquilizar."
"Oh god, I'm tired
and my heart is broken
It's so hard to feel so all alone,
and so far,
so far away from home

Oh god, I'm so lost
and I'm here in darkness,
and I want to see the light of love
I'm looking for meaning in my life"

domingo, 2 de outubro de 2011

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é.
(E se soubesse quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisa por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até o campo com grandes propósitos.
Mas lá só encontrei ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso em ser tanta coisa!
E há tantos que pensam em ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não mascará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre só o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou uma cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(...) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(...) Meu coração é um balde despejado.
Com os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

(...) Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me"
Nos teus "Noturnos", trêmulo, perpassa,
Como um lamento a ecoar por horas mortas.
Vindo, talvez, de um cárcere sem portas,
Um vasto miserere de uma raça.

O martírio da Pátria se entrelaça
Ao mal da vida, rude, que suportas;
E quando, elo gênio à glória aportas,
É uma ronda de lágrimas, que passa.

Os teus acordes lembram agonias,
Como o luto violáceo das olheiras
Recordam pranto, evocam funerais;
Ressoam, mesmo no antro de almas frias,
Relembrando em crepúsculos, nas eiras,
Horas profundas que não voltam mais."



(sobre chopin e sua essência na música e, por que não, sua genialidade)

sábado, 1 de outubro de 2011

"Today artists and illustrators are also turning to the graffiti, coming to the streets. I think it's mostly a greater good to the guy who's doing it, it's not to the public. The public is just a consequence. Because those who do it for the public are not putting their souls into it, and those who put theirs souls in it don't really mind if it looks pretty. They're doing it because that's what they're feeling." (nick alive)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

“Que privilégio de profundidade há nos devaneios da criança! Feliz a criança que possui, que realmente possui as suas solidões! É bom, é saudável que uma criança tenha suas horas de tédio, que conheça a dialética do brinquedo exagerado e dos tédios sem causa, do tédio puro. Em Memórias, Alexandre Dumas diz que era um menino entediado, entediado até as lágrimas. Quando sua mãe o encontrava assim, chorando de tédio, perguntava-lhe: -E por que é que Dumas está chorando? -Dumas está chorando porque Dumas tem lágrimas -respondia o menino de seis anos. Esta é sem dúvida uma anedota como tantas outras contadas nas Memórias. Mas como ela marca bem o tédio absoluto, o tédio que não é o correlativo de uma falta de amigos pra brincar. Não existem crianças que deixam o brinquedo pra ir se aborrecer num canto do sótão? Sótão dos meus tédios, quantas vezes senti tua falta quando a vida múltipla me fazia perder o germe de toda liberdade!”

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

"Sempre soube: mesmo quando mergulhado na rotina desolada daquele ano. Sentira sobre a minha cabeça o peso da maldição original; nem sequer valia ainda a pena debater-me: não havia possibilidade alguma de anulá-la. Deixei-me levar, indiferente, pelos caprichos do acaso: ao saber de um desejo, de um pesar ou de uma revolta. Seguia sempre em frente, alheio a tudo; meus passos, dentro da noite, não me conduziam a parte alguma. Desnorteados por um destino imprevisível, aguardávamos o raiar do dia para descobrir em que lodo nos havíamos irremediavelmente atolado."
Boy on the bike, what are you like
As you cycle round the town?
You're going up, you're going down
You're going nowhere
It's not as if they're paying you
It's not as if it's fun
At least not anymore
When your legs are black and blue
It's time to take a break
When your legs are black and blue
It's time to take a holiday

segunda-feira, 19 de setembro de 2011


"Volto do seu sonho, do seu corpo, como alguém que perdeu as pegadas na maré, na noite interminável. Como quando entro na livraria e o dia vai avançando, em qualquer hora haverá uma porta fechada, o escuro lá fora, o relógio. Como quando sei que o vinho vai acabar, o copo uma ampulheta, e você ficou lá dentro da memória. Como quando o charuto aceso está chegando aos seus dois terços, o telefonema tem que acabar, é hora de ir embora, e eu volto só, eu acenando para o nada.

Saio do sonho como quem não acredita, o peso da memória me arrastando, e tento aos poucos o café, o pão, a xícara branca com o sol das nove horas e o mundo ambíguo em volta, sem lábios.

É como começar a andar e os olhares que busco se desviam, o que é claro e intermitente na rua me perturba e foge, a cor das coxas e dos olhos.

É quando o fim de tarde se aproxima e perco tempo, me perco nesse labirinto de vozes mudas, olhos mudos, bocas que quero pintar mas não existem.

Descanso num café, numa página, numa taça. E escapo das ruas quando a noite é inútil. Quando o bar, onde o bar.

À margem do fascínio, na espera, no alimento do tempo, me arrisco a deixar de ser. No balcão, à beira da fronteira, conhaque e alguma coisa incerta no exercício das horas. O tédio da experiência nula.

O gosto pela ausência, a farsa do corpo que exaspera. A musa passa e eu não existo, meu corpo que se estende rumo a tudo. E temo que o desejo seja vício.

Imagino a fome desses passos, seu movimento alado. Eu tenho aquilo que falo, o que aniquila. Eu posso esse vislumbre em meio aos peitos. Eu tremo com essa língua oculta, a boca carne, rubra, lúbrica. Quando o corpo."

(via your heart of glass)
"Style is the answer to everything.
A fresh way to approach a dull or dangerous thing
To do a dull thing with style is preferable to doing a dangerous thing without it
To do a dangerous thing with style is what I call art

Bullfighting can be an art
Boxing can be an art
Loving can be an art
Opening a can of sardines can be an art

Not many have style
Not many can keep style
I have seen dogs with more style than men,
although not many dogs have style.
Cats have it with abundance.

When Hemingway put his brains to the wall with a shotgun,
that was style.
Or sometimes people give you style
Joan of Arc had style
John the Baptist
Jesus
Socrates
Caesar
García Lorca.

I have met men in jail with style.
I have met more men in jail with style than men out of jail.
Style is the difference, a way of doing, a way of being done.
Six herons standing quietly in a pool of water,
or you, naked, walking out of the bathroom without seeing me."

Bukowski

domingo, 18 de setembro de 2011

"O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar...
E a ideia de a tua voz voz soar a lira dum Apolo fingido..."
"A sua pessoa, como a sua música, era um poema elegante, o que representava para ele fonte de grande satisfação."
"(...) Absorto em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má..."
"Chopin amava a música. Amava o seu piano. Amava profundamente o som deste instrumento, que acompanhava os seus passos desde a infância até ao seu triste e melancólico fim...

O piano era o seu confidente. Ao piano, confessava as alegrias e as suas tristeías...

Através das notas, expressava os seus verdadeiros sentimentos; nelas, sentimos o toque do seu coração e a vibração da sua alma.

A música era a sua verdadeira paixão. A que nunca deixou de amar. A que nunca o traiu. Em que sempre se refugiava: nos momentos eufóricos ou nos momentos de profunda melancolia.

A música era a sua eterna namorada. A namorada do compositor, a do patriota, a do grande pianista, a do cavalheiro dos salões de Viena e Paris e a do pobre e doente gênio...

A música era para Chopin um mundo mágico, só seu, do qual não falava, nem escrevia. Nesse mundo, passa ele a maior parte da sua verdadeira vida, em completa solidão; aí, ele amou, esperou, sofreu, lutou, rebelou-se e conquistou - como sua Polônia que só, no mundo, sofreu, lutou, rebelando-se. O âmbito emocional da música de Chopin é tremendo, e é marca de seu talento único pelo qual logrou espressar toda essa emoção por meio de um simples instrumento, o piano, e muitas vezes com a estrutura magistral de composições curtas."
"No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto..."
"É isso que tem que ser evitado; é preciso não colocar estranheza onde não existe nada."
"O teu sorriso é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia...,
e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte..."
"QUANDO EU era criança ou adolescente, pensava que a felicidade só chegaria quando eu fosse adulto, ou seja, autônomo, respeitado e reconhecido pelos outros como dono exclusivo do meu nariz.

Contrariando essa minha previsão, alguns adultos me diziam que eu precisava aproveitar bastante minha infância ou adolescência para ser feliz, pois, uma vez chegado à idade adulta, eu constataria que a vida era feita de obrigações, renúncias, decepções e duro labor.

Por sorte, 1) meus pais nunca disseram nada disso; eles deixaram a tarefa de articular essas inanidades a amigos, parentes ou pedagogos desavisados; 2) graças a esse silêncio dos meus pais, pude decretar o seguinte: os adultos que afirmavam que a infância era o único tempo feliz da vida deviam ser, fundamentalmente, hipócritas; 3) com isso, evitei uma depressão profunda pois, uma vez que a infância e a adolescência, que eu estava vivendo, não eram paraíso algum (nunca são), qual esperança me sobraria se eu acreditasse que a vida adulta seria fundamentalmente uma decepção?

Cheguei à conclusão de que, ao longo da vida, nossa ideia da felicidade muda: 1) quando a gente é criança ou adolescente, a felicidade é algo que será possível no futuro, na idade adulta; 2) quando a gente é adulto, a felicidade é algo que já se foi: a lembrança idealizada (e falsa) da infância e da adolescência como épocas felizes.

Em suma, a felicidade é uma quimera que seria sempre própria de uma outra época da vida - que ainda não chegou ou que já passou.

No filme de Arnaldo Jabor, "A Suprema Felicidade", que está em cartaz atualmente, o avô (extraordinário Marco Nanini) confia ao neto que a felicidade não existe e acrescenta que, na vida, é possível, no máximo, ser alegre.

Claro, concordo com o avô do filme. E há mais: para aproveitar a vida, o que importa é a alegria, muito mais do que a felicidade. Então, o que é a alegria?

Ser alegre não significa necessariamente ser brincalhão. Nada contra ter a piada pronta, mas a alegria é muito mais do que isso: ser alegre é gostar de viver mesmo quando as coisas não dão certo ou quando a vida nos castiga. É possível, aliás, ser alegre até na tristeza ou no luto, da mesma forma que, uma vez que somos obrigados a sentar à mesa diante de pratos que não são nossos preferidos ou dos quais não gostamos, é melhor saboreá-los do que tragá-los com pressa e sem mastigar. Melhor, digo, porque a riqueza da experiência compensa seu caráter eventualmente penoso.

Essa alegria, de longe preferível à felicidade, é reconhecível sobretudo no exercício da memória, quando olhamos para trás e narramos nossa vida para quem quiser ouvir ou para nós mesmos. Alguém perguntará: é reconhecível como?

Pois é, para quem consegue ser alegre, a lembrança do passado sempre tem um encanto que justifica a vida. Tento explicar melhor.

Para que nossa vida se justifique, não é preciso narrar o passado de forma que ele dê sentido à existência. Não é preciso que cada evento da vida prepare o seguinte. Tampouco é preciso que o desfecho final seja sublime (descobri a penicilina, solucionei o problema do Oriente Médio, mereci o Paraíso).

Para justificar a vida, bastam as experiências (agradáveis ou não) que a vida nos proporciona, à condição que a gente se autorize a vivê-las plenamente.

Ora, nossa alegria encanta o mundo, justamente, porque ela enxerga e nos permite sentir o que há de extraordinário na vida de cada dia, como ela é.

É óbvio que não consegui explicar o que são a alegria e o encanto da vida. Talvez eles possam apenas ser mostrados: procure-os em "Amarcord" (1973), de Federico Fellini, em "Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas" (2003), de Tim Burton ou no filme de Jabor. "A Suprema Felicidade" me comoveu por isto, por ter a sabedoria terna de quem vive com alegria e, portanto, no encantamento.

Segundo Max Weber (1864-1920), a racionalidade do mundo industrial teria acabado com o encanto do mundo. Ultimamente, bruxos, vampiros, lobisomens, deuses e espíritos andam por aí (e pelas telas de cinema); aparentemente, eles nos ajudam a reencantar o mundo.

Ótimo, mas, para reencantar o mundo, não precisamos de intervenções sobrenaturais. Para reencantar o mundo, é suficiente descobrir que o verdadeiro encanto da vida é a vida mesmo."
“Nas artes também, a boa vida significa alguma coisa. Para o tipo de artista que pensa que arte deveria importar, ser profunda e linda, e faz o trabalho de converter as tragédias do mundo em procuradores para a amabilidade; o tipo de artista que pensa que a criatividade importa como fonte de inspiração para o criador e para o público; o tipo de artista que não ganha o Prêmio Turner ou aparece nos noticiários, ou quem, em um ato de mimetismo, não vende de volta aos super-ricos a sua ostentação como se fosse refinamento, ou age como se arte fosse uma questão de competição. Eu não sou crítico de arte, mas desconfio que o que é bom sobre o tipo certo de arte é o mesmo que o que é bom sobre a vida: fazer uma coisa melhor de algo cheio de falhas.”

Dr. Ben Irvine (Via Thais Beltrame)
"Cadeira de balanço é um móvel da tradição brasileira que não fica mal em apartamento moderno. Favorece o repouso e estimula a contemplação serena da vida, sem abolir o prazer do movimento. Quem nela se instale poderá ler estas páginas mais a seu cômodo. (...) Vamos sentar."

ternura.
"What amounts to a dream anymore?
A crude device; A veil on our eyes
A simple plan we'd be different from the rest
And never resign to a difficult life

Common fears start to multiply
We realize we're paralyzed
Where'd it go, All that precious time?
Did we even try to stem the tide?

Why should we waste it all?
Buying into the same old lines
The longer we wait around
The faster the years go by

It's not too late
To feel a little more alive
You can't escape
If only, start to break the ride

Darlin' we've been through this
So if you want to follow me you should know
I was lost then and I am lost now
And I doubt I'll ever know which way to go"
an oasis of horror in a desert of boredom.


(k.o e zooey)
"Ninguém pode ser o dono das culpas sozinho, nem a de destruir a si mesmo. Magnólia, nisso tudo, apenas colecionava seus besouros sem preocupar-se com método e ordem, passava os dias olhando as ilustrações ou recolhendo os minúsculos cadáveres, costurando-os em panos e trapos, tules e cetins. Magnólia levava consigo o aparente e o inexistente como se fosse salvá-los da eternidade em seu colo. Os vestidos são retos e serenos, alguma coisa neles esvoaça angustiada, mas é impossível saber com precisão o que seja, mais uma dessas coisas que sabemos existir porque faltam. Um dos vestidos ela usava em noites grossas de medo e dor: cinza-claro, chumaços de cabelo envoltos em pó fazendo na saia um belo jogo de transparências. Em Magnólia a solidão virou pano."
"Contar deforma, contar os fatos deforma os fatos e os tergiversa e quase os nega, tudo o que se conta passa a ser irreal e aproximado embora seja verídico, a verdade não depende de que as coisas tenham sido ou acontecido, mas de que permaneçam ocultas e sejam desconhecidas e não contadas, enquanto se relatam ou se manifestam ou se mostram, mesmo que seja no que parece mais real, na televisão ou no jornal, no que se chama realidade ou vida ou vida real até, passam a fazer parte da analogia e do símbolo, já não são fatos, mas se transformam em reconhecimento. A verdade nunca resplandece, como diz a fórmula, porque a única verdade é a que não se conhece nem se transmite, a que não se traduz em palavras nem em imagens, a encoberta e não averiguada, e talvez por isso se conte tanto ou se conte tudo, para que nunca tenha ocorrido nada, uma vez que se conta."

domingo, 11 de setembro de 2011

"The thing is you have to be faithful to what's inside yourself 'cause every person, inside themselves, they carry their own private universe. But every moment we're conditioned to ignore that, the media itself tends to massify people, they make everyone be the same, always the same, so there's this kind of person, the hard-working guy, a guy that likes TV, a guy that likes soccer and carnival, there's this script that tends to massify people and void their individuality. Art is one of the rare opportunities that you may have to express your individuality, but to express it to a collective, sometimes people don't even know they carry that opportunity inside themselves, so if you have a message to pass along, be true to whatever you feel, regardless of what anyone might think."

(galo)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

"Passamos a usar cada vez com mais frequência o pronome "nós". É uma palavra estranha. "Amanhã eu vou fazer isso ou aquilo", a gente diz normalmente. Ou pergunta a outra pessoa, a "você" por exemplo, o que vai fazer. Isso não é difícil de entender. Mas de repente "nós" passa a ser a coisa mais óbvia do mundo. "Nós vamos de balsa a Langøyene para nadar?" - "Ou vamos ficar lendo em casa?" - "Nós gostamos da peça de teatro?" - E então, um dia: "Nós somos felizes".
Ao empregar o pronome "nós", a gente estabelece uma conexão entre duas pessoas com uma ação comum e quase faz com que elas se transformem em uma só. Muitas línguas têm um pronome especial para se referir a apenas duas pessoas. Esse pronome se chama dual, e designa as coisas que vão aos pares. Eu acho isso importante, pois às vezes a gente não é nem uma pessoa nem muitas. A gente é "nós dois", e o é como se esse "nós dois" fosse inseparável. São fabulosas as regras que passam a vigorar quando esse pronome é subitamente introduzido, quase como por um passe de mágica: "Agora nós vamos cozinhar." - "Agora vamos abrir uma garrafa de vinho." - "Agora vamos dormir." Não chega a ser absurdo falar assim? Em todo caso, é completamente diferente de dizer "Agora você precisa tomar o ônibus e ir para casa, eu estou cansado".
Quando a gente usa o dual, do qual a palavra "ambos" é um vestígio, passam a vigorar regras totalmente novas. "Nós vamos passear!" Nada mais simples, Georg, somente três palavras, e no entanto elas descrevem uma sequência de atos que interferem profundamente na vida de duas pessoas na Terra. E não é só em termos de quantidade de palavras que se pode falar em economia de energia. "Vamos tomar banho", disse Veronika. "Vamos comer." - "Vamos dormir!". Quando a gente fala assim, precisa só de um chuveiro. Precisa só de uma cozinha, só de uma cama."

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

http://www.ideafixa.com/entrevista-ilustrada-com-herbert-baglione herbert você é incrível.

domingo, 4 de setembro de 2011

"Na época, Veronika aguçou o meu olho para as pequenas sutilezas da natureza, e elas eram infinitas. A gente era capaz de colher uma anêmona ou uma violeta e passar vários minutos observando o pequeno milagre. O mundo não era um conto de fadas extraordinário e único?"
Onde vai você?
- Eu vim pra ver o mar
E o que vem buscar?
- Procuro o meu amor
A menina olhando o céu
Na vereda veio descansar
Quando a fonte a viu sorriu, refletiu mil sonhos pra lhe dar
Bela menina eu sou a fonte que o monte namorava
Moro na trilha que o riacho traçou no pó da estrada
Vê quanto eu já sofri, quanto eu me perdi
Volte para casa
E a menina olhando o céu
Prosseguiu viagem para o mar
Quando a fonte a viu chorou e pediu de novo pra voltar
Veja menina eu sou a fonte que o monte namorava
Hoje estou só pisando a pedra e o pó da minha estrada

Paulinho Tapajós

(via just a cute mess)

sábado, 3 de setembro de 2011

"Fico pensando... Do que será que a gente é feito, que a gente precisa dormir?"
"É uma maneira de descansar. Algumas pessoas acham que também precisamos sonhar."
"Por quê?"
A mãe respirou fundo.
"Não sei."
"Mas acho que eu sei a resposta."
"É mesmo?"
"Acho que é porque precisamos viajar bem longe nos nossos sonhos."
"Você pensa muita coisa estranha, Cecília."
"Há tanta gente que sofre tanto que talvez eles morressem de tanto sofrer se não tivessem também uns sonhos bons no meio de toda a tristeza."
"A gente chora quando alguma coisa é triste", disse a avó depois de um tempo. "E às vezes a gente também derrama uma lágrima quando alguma coisa é bonita."
"E quando uma coisa é feia, a gente não ri?"
A avó pensou um pouco.
"Nós rimos dos palhaços porque são engraçados. Ou, talvez, porque eles também são feios. Olhe só!"
Franziu o rosto numa careta horrosa, fazendo Cecília cair na risada.
A avó continuou: "Talvez uma coisa bonita às vezes nos deixe tristes porque sabemos que não vai durar para sempre. E rimos do que é feio porque sabemos que é só uma brincadeira".

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

"i wake up, another morning
i fall down in another day
somehow i wonder now
is your door still open?
i wake up, another morning
i fall down in another dream
i wake up and fall down anyway.
i wake up and fall down, anyway."

sábado, 20 de agosto de 2011

"E então nem mesmo toda a arte será capaz de consolá-la, ainda que se diga muito sobre a arte - sobretudo, que é uma consolação. Mas às vezes a arte é que gera o sofrimento."

"Alguma coisa ficou e não pode ser só essa agonia no meu coração."
"Hoje me limito a dizer não - não tenho vontade de expor o vazio."
"... porque os pais não entendem nada de arte - só sabem que ela existe. E se alegram tanto com essa arte! Mas a arte, por sua vez, rejeita muitos, pois é preciso haver limites."

"Queria ser o avesso daquilo que era.
Queria espremer o vazio até a última gota.
Queria sentir, mas tudo me escapava."
"Quanto mais entendemos, menos poéticos e mais achatados ficamos. Se havia falta de nexo, não era na matemática, era na minha cabeça."
"Sinto-me como uma mulher de Schiele, mas tudo o que desejo é ser uma mulher de Klimt."
"Na vida existe o branco e existe o preto, mas entre esses dois extremos existe o cinza, que não é nem branco nem preto. As pessoas tendem a se aferrar às suas ideias, traumas, experiências, afirmam que isso é branco e que aquilo é preto, porém se esquecem de que tudo é e não é. Por isso eu uso cinza, porque é o branco com a sutil essência do preto ou o preto com a sutil essência do branco."
"No entanto, eu perguntaria ao Doutor, desejar não mais desejar não seria ainda desejar?"

"Ouvia a tempestade, entretanto não era a chuva que fazia aquele barulho, era a vida passando, e eu não podia fazer nada além de flutuar naquele oceano que era a minha vida."
"Todo ato humano é um ato poético."
"Grande é o dia em que me descubro viva.

Eu e você, à mercê do inesperado."
"... é mais difícil justificar o que nos agrada do que o que nos desagrada. Quando uma pessoa diz que você é uma incompetente sem talento você acredita sem se questionar, mas perante elogios você fica desconfiada e inquieta, não é mesmo?"

"Dava largas passadas sobre a esburacada calçada de pedras portuguesas mal colocadas. O salto do meu sapato enganchava nas pequenas aberturas do chão, tentando impedir que eu avançasse."
"Se Klimt não escapou das garras daquelas mulheres de Schiele, como eu escaparia?"
"... e existia um sorriso achatado e existia o regozijo e uma alegria exaurida, um cansaço fingido, porque havia ambição, e existia uma menina e ela sonhava, mas era um pesadelo que já foi meu.

e existia uma menina sozinha e existia eu sozinha, um calafrio puro, meu, só meu."

"Na verdade, não há férias na arte, a arte nos persegue onde quer que seja, e o artista está de acordo com isto."
"Esse apodrecimento exige muitos anos. Anos em que nada acontece."
"Ela é assim. Não há o que fazer. Se muitas são desse ou daquele jeito, ela é, por princípio, o contrário. Se as outras dizem hu, ela sozinha, diz ho e ainda se orgulha disso."
"... e existia amor e falta de amor e sexo e a possibilidade de viajar com segurança pelo mundo, por uma cidade, por uma casa, por um quarto, por dentro de mim mesma."

"... e eu me fundia àquela visão, o merguho na noite tenebrosa que escondia de mim os meus próprios segredos."
"... era o que restava, além do pesado vazio que se impunha sobre mim, a sequência da vida que me subjugava, implicando abandono, implicando resistência, implicando o existir e uma obscura esperança, fome e sede e um deserto de onde eu não sabia sair, não existia porta, janela, chaminé, túnel, corredor, escada, não existia saída nem entrada, nem chave, nem cofre, nem segredo, e não existia sótão, porão ou esconderijo, não existia passagem secreta, não existia saída, só se existia, eu, eu e uma cadeira, eu e um pernilongo, eu e uma estranha, eu e uma família, eu e um poema, eu e um céu, eu e um espelho que reflete tudo e tudo que é, é questionável e tudo que foi talvez não tenha sido."
"O que tem de errado se você de repente decidiu corrigir algum aspecto do mundo que lhe é intolerável pela elaboração e realização de um desejo em forma de delírio?"

"Ali eu podia simplesmente ser, sem adjetivos, transitória e vulnerável, simplesmente humana. Sim, sim, humana, nem sujeito, nem objeto, nem eu, nem outra e ainda assim eu e outra, e muitas e uma e ninguém."
"A mitologia do senso comum diz que se morre por amor. Não acredito, nunca vi isso acontecer. No entanto, já vi gente morrer por falta de amor."
"Não havia saída, eu estava cercada por todos os lados: pelo hoje, pelo começo e pelo fim. Perpetuamente condenada ao agora. Será que algum dia estaria pronta
para isso, para o para sempre, que, como disse Emily Dickinson, é composto de agoras?"

"Permitia que ele fosse, antes que viesse. Aceitava perdê-lo, antes de tê-lo."

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"silence is the universal refuge, the sequel to all dull discourses and all foolish acts, a balm to our every chagrin, as welcome after satiety as after disappointment"

(via thais beltrame)

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

"Mas o quê, julga que isso é falar de amor? Você, só sabe falar de cama... O amor é uma coisa muito diferente..."

"É-se feio, mas a vida é bela."
"Só a personagem conta, a paisagem não é e não deve ser mais que um acessório. A paisagem só deve servir para fazer compreender melhor o caráter de uma personagem. Corot só é grande pelas sua personagens, o que é igualmente válido para Millet, Renoir, Manet e Whistler. Quando os pintores de retrato fazem paisagens, tratam-nas como um rosto; as paisagens de Degas são extraordinárias, porque são paisagens de sonho; as de Carrière pareciam-se com máscaras humanas! Monet que abandonou a personagem, o que não teria podido fazer!"
"A fealdade tem sempre, e em toda a parte, os seus sortilégios; é excitante encontrá-los onde até agora ninguém os tinha notados."
"Comovia-me sempre o modo como Lautrec mudava de tom quando começava a falar sobre arte. Ele que, em qualquer outra ocasião, era tão cínico e tinha conversas despropositadas, tornava-se então de uma seriedade absoluta. Para ele, era como se fosse uma religião."
"Meu diário, que abandonei há algum tempo, voltou a cair-me em mãos hoje e fiquei surpreso ao ver quão conscientemente, e passo a passo, vim a parar no estado em que estou; com quanta clareza sempre vi a minha situação e, de qualquer forma, segui procedendo como uma criança; agora mesmo sigo vendo tudo tão claro e não vislumbro indício algum de emenda!"
"Não posso, não posso; tenho de fazer ouvidos de mercador e bater com a cabeça contra as paredes; sim, e tudo isto por causa de uma arte que me escapa e que nunca saberá tudo o que eu tive de sofrer por ela... Ai, minha querida avó, faz bem em nunca se entregar da maneira como eu fiz à pintura. É muito pior que o Latim, se se quiser levar a sério, como eu quero."
"Às vezes digo para mim mesmo: "O teu destino é único, podes considerar todos os outros felizes... nenhum mortal foi tão martirizado quanto tu..." E depois disso leio qualquer poeta antigo, e é como se lesse no meu próprio coração. Tenho de suportar tanto! Ah, terá havido antes de mim homem tão miserável?"

terça-feira, 9 de agosto de 2011

olho para um lado: desespero
olho para outro: desespero

sensação de estar em casa.

domingo, 7 de agosto de 2011

Por vezes almejo a solidão: que mais nenhuma pessoa invada meu espaço para fazer o que bem entender dele, sem, muitas vezes, parar para pensar sobre o impacto que causa em cada pedacinho de mim, dos abismos aos becos, seja ele bom ou ruim; que não penetrem no meu coração, que não saciem suas ânsias e seus desejos, para que depois eu não sofra desejando mais, e que no final de tudo, não receba mais nada. Almejo não precisar olhar sempre os mesmos rostos fingindo um sorriso ou um "bom dia", escondendo minha louca vontade de sair correndo para bem longe, uma vontade que beira ao desespero. Almejo também, por alguns segundos apenas, desistir daquilo que mais me faz bem, e que por outro lado, mais me faz sofrer.
Porém, por outras vezes não almejo a solidão: quero-a bem longe de mim (embora ela esteja, felizmente e infelizmente, mais presente do que ausente). Por conseguinte, disperso todos os meus almejos anteriores, porque lá no fundo ainda existe algo que me diz, quase num sussurro, que ainda vale a pena: tudo, todos. E se, por alguns segundos penso em desistir, nos outros restantes lembro que o amor dentro de mim é muito maior que essa vontade gritante e ensurdecedora.
E não importa se as pessoas ao meu redor não correspondem às minhas expectativas, nem se param para me escutar ou sequer fazem algum esforço para me entender, enquanto houver este sussurro dentro do meu coração, que por mais leve que seja, percorre cada milímetro do meu exterior e interior, continuarei a acreditar na chegada de alguém que me faça sentir compreendida com um apenas um olhar, que segure as minhas mãos enquanto diz: "Está tudo bem, isso vai passar. Eu te entendo.", sem dizer uma palavra sequer de modo impensado, como a maioria arrebatadora faz, infelizmente, mas que diga com o coração, e que depois disso tudo me abrace, como uma forma de dizer que, além da arte, tenho a quem recorrer, tenho aonde me perder (nos seus braços), e que me socorra e nunca me deixe cair dentro do meu próprio abismo. Que faça isso sempre que perceber, sem precisar de eu dizer uma única palavra de socorro, e nunca mais me faça ter e sentir desejos tão agonizantes.
E que preencha este vazio dentro de mim, quantas vezes for preciso.

domingo, 24 de julho de 2011

cheiro de lápis de cor é cheiro de aconchego.

Gizem Vural







http://vimeo.com/24927348
"(...) refugiava-me no mais profundo de mim mesmo, esforçava-me por emigrar para pensamentos eternos, e não deixar nada de mim, nada de vivo, à superfície do meu corpo - insensibilizada como a dos animais que por inibição fingem de mortos quando os ferem - a fim de não sofrer demasiado naquele lugar onde a minha falta total de hábito me era ainda mais sensível ante a vista do hábito local."
"- Qual você acha que é, hoje em dia, nesse mundo, a função da literatura, a função da arte?
- A verdade é que é muito difícil dar uma resposta que não pareça pedante ou arrogante ou que não pareça que a gente atribui aos artistas uma função privilegiada no mundo. Como se Deus nos beijou no berço e nos escolheu para salvar os outros. Eu não acredito nisso de jeito nenhum. Não acredito em nenhum tipo de aristocracia, nem na do talento, ainda mais quando a aristocracia do talento é auto-eleita, porque somos nós, os literatos, os artistas em geral, que no zoológico humano habitamos a jaula dos pavões. Então ficamos continuamente nos cumprimentando por sermos bonitos e inteligentíssimos, e eu não concordo com isso.
Acho que o exercício da solidariedade, quando se pratica de verdade, no dia-a-dia, é também um exercício de humildade, que ensina você a se reconhecer nos outros e a reconhecer a grandeza escondida nas coisas pequenininhas, o que implica denunciar a falsa grandeza nas coisas grandinhas em um mundo que confunde grandeza com grandinho.
Faz pouco tempo, em uma entrevista que me fizeram em Madri, um jornalista me falou: "Lendo os seus livros, sinto que você tem um olho no microscópio e outro olho no telescópio.", e achei uma boa definição das minhas intenções, do que eu gostaria de fazer escrevendo. Ser capaz de olhar o que não se olha, mas que merece ser olhado; as pequenas, as minúsculas coisas de gente anônima, de gente que os intelectuais costumam desprezar, esse micro-mundo onde eu acredito que se alimenta de verdade a grandeza do universo, e ao mesmo tempo ser capaz de contemplar o universo , através do buraco da fechadura, ou seja, a partir das pequenas coisas ser capaz de olhar as grandes, os grandes mistérios da vida, os mistérios da dor humana, mas também o mistério da persistência humana nesta mania, às vezes inexplicável de lutar por um mundo que seja a casa de todos e não a casa de pouquinhos e o inferno da maioria e outras coisas mais; a capacidade de beleza, a capacidade de formosura, de gente mais simples, às vezes de gente mais singela, que tem uma insólita capacidade de formosura que, às vezes, se manifesta em uma canção, em um grafite, em uma conversa qualquer. A que as crianças têm... O que acontece é que depois nós, adultos, ocupamos em tranformá-las em nós mesmos, e aí destruímos a vida delas. Mas, temos que ver o que é uma criança, não? São tão pagãs. (...) Nessa idade somos todos pagãs, e nessa idade somos todos poetas. Depois o mundo se ocupa de apequenar nossa alma. Isso que chamamos de crescimento, desenvolvimento."
"Mas, quando a gente ama de verdade, no amor, na amizade, ama as luzes e as sombras de cada pessoa ou de cada lugar."
"O medo ameaça:
se você ama, terá Aids
se fuma, terá câncer
se respira, terá contaminação
se bebe, terá acidentes
se come, terá colesterol
se fala, terá desemprego
se caminha, terá violência
se pensa, terá angústia
se duvida, terá loucura
se sente, terá solidão."
"e o melhor dos meus dias é o que ainda não vivi."
"the past is a place
that you can visit.
just don’t stay around there for too long." thais beltrame
"eu parei de enxergar com os olhos que mentem tanto.
os olhos que contam das cores e linhas e formas que você vê no mundo na verdade te distraem das cores e linhas e formas que já existem dentro de você."


"I stopped seeing through these eyes that lie so much.
the eyes that tell you of the colors and lines and shapes that you see in the world which actually distract you from the colors and lines and shapes that already exist inside you." thais beltrame
http://www.youtube.com/watch?v=w8rOUoc_xKc&feature=player_embedded

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.

Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.

É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

É telefonar muito, estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.

É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.

Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.

Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

eu não quero que você se resuma em apenas um capítulo da minha vida.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

... E, enquanto os seus olhos eram tímidos e reservados, até mesmo retraídos, os dele eram extrovertidos e abertos para o mundo, como se quisesse captar para si cada detalhe, do mais simplório ao mais sofisticado. E, por mais ordinários que fossem, eles se tornavam interessantes (pelo menos pra mim), se tornavam algo mais. Não por acaso, quando olhava fixamente para seus olhos, era como se fosse um mergulho profundo. E, por mais que desviasse os olhos, parecia haver algo que puxasse de volta a sua atenção para aquele abismo que beirava à perdição. Era irresistivelmente perigoso, e de um jeito bonito e até mesmo poético: era muito fácil se perder neles. E, embora não admitisse, só assim se sentia completa; só assim suprimia sua ânsia em relação ao mundo e, principalmente, à sua essência, pois, tudo o que não conseguia captar e sugar para si, ele repassava à ela, algo semelhante a contar histórias. Mas de um jeito mais bonito. E tudo, tudo num curto espaço de tempo: o piscar de um olho. E de sensações.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

just because we don't talk doesn't mean I don't care... You're always on my mind.
"Sou um homem livre – e preciso da minha liberdade. Preciso estar sozinho. Preciso meditar na minha vergonha e no desespero em retiro; preciso da luz do sol e das pedras do calçamento das ruas sem companheiros, sem conversação, frente a frente comigo, apenas com a música do meu coração como companhia. Que querem vocês de mim? Quando tenho algo a dizer, ponho-o em letra de forma. Quando tenho algo a dar,
dou-o. Sua curiosidade indiscreta faz virar meu estômago! Seus cumprimentos humilham-me! Seu chá envenena-me! Nada devo a ninguém. Seria responsável somente perante Deus – se Ele existisse!"
"Bom, para começo de conversa", comecei, ainda lhe apresentando um sorriso ameno e tranqüilizador, "você é um canalha e sabe disso. Tem medo de alguma coisa, ainda não sei do quê, mas vamos chegar lá. Comigo, você faz de conta que é simplório, um joão-ninguém, mas de si para si tem-se na conta de muito esperto, de importante, de durão. Não tem medo de coisa alguma, não é mesmo? Tudo conversa fiada, e você sabe muito bem. Vive cheio de medo. Diz que agüenta. Agüenta o quê? Um murro no queixo? Claro que agüenta, com uma cara de concreto feito a sua. Mas será que agüenta a verdade?"