sexta-feira, 24 de maio de 2013

Da Bela Adormecida



                                                    1

"(Há névoa.)
Um beijo seria uma borboleta afogada em mármore.
Uma voz seria raiz perfurando cegueiras.
As paredes unificaram feitios e cores. (Há névoa)
e mesmo as janelas abertas estão fechadas com arminhos
e as soleiras revestidas de musgos, líquens, pelúcias brancas.

E fundiram-se as montanhas. (Há névoa), dissolveram-se no ar os mortos astros.
As areias povoaram-se de avestruzes, ursos brancos, beduínos,
imóveis, sentados, esperando.

(Há névoa.) Entre água e céu invisíveis,
suspendem-se os navios, desfigurados em ouro difuso.
E as árvores encanecem, numa inesperada velhice.
Se uma flor cair, não poderá dizer "Boa noite!" a nenhuma outra,
porque de ramo a ramo, erram distâncias invencíveis.

É assim como entre nós. Figura sem rosto, caminhante do mundo.

(Há névoa.)
Minhas palavras são folhas soltas no ar espesso,
indo e vindo à toa, olhando apenas para si mesmas.

No peso do ar fatigante, remam as minhas mãos e despedaçam-se.
É sempre longe, mais longe. É sempre e cada vez mais longe.
Oh! Se existisse um limite!
(Há névoa.)

Filtra-se por meus olhos a cinza da noite silenciosa.
Caminha pelo meu sangue com o passo pegajoso da sua vida acre.
Pousa em meu coração. Descansa. Adere à minha vida guardada...
(Há névoa.)

E no entanto, em minha memória, ainda existe uma espécie de música!"

Cecília Meireles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário