sábado, 29 de setembro de 2012

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"Eu te conheço, e conheço teus erros, sei todo o bem que vive e brilha em ti!"

"O Brasil no ar"



  "Sempre muito tristes as noites de São João de Guignard. O que se festeja, afinal, em meio a espaços tão vastos, que nos retiram o fôlego e a escala?

(...) Essa natureza tem cismas, pudores. Envergonham-na os extravasamentos, as manifestações cabais. O que lhe agrada é essa sedimentação lenta e continuada, a manter tudo em suspensão - um mundo de névoas, sem solo ou pontos de apoio firmes.


  Vem daí a impressão de imensidão que perpassa boa parte das paisagens de Guignard. Pois como encontrar dimensões num território tão imaterial, que parece pairar além das definições, e que agora é profundidade, instantes depois torna-se puro véu, para logo após transformar-se numa garoa fina, que dilui a consistência das coisas? Por isso a espacialidade de Guignard não tem nada de sublime, daquela natureza imponente que se desdobrava a perder de vista nas telas de Caspar David Friedrich, fazendo da amplidão um indicador de sua potência.

  (...) Essa impressão de uma imensidade relutante deriva também da relação que seu espaço estabelece com as coisas, sobretudo com a acidentada topografia das paisagens.

  (...) Não há nela uma volta à profundidade ilusionista, à perspectiva e suas exigências, embora suas situações sejam muito singulares. Não é para o fundo que nos puxa a pintura de Guignard. O que se impõe são essas espessuras incertas, uma espécie de respiração contida que nos envolve em seu moroso vaivém. E como essa cadência permanece irresolvida, resta correr os quadros de alto a baixo, na esperança de encontrar um apoio que possa sustentar formas mais estáveis, que deem direção e alguma ordem às obras. Em vão.


  (...) Apenas algumas pequenas figuras - balões, igrejinhas, palmeiras, homenzinhos, bandeiras - adquirem uma presença mais plena, que as pequenas dimensões reduzem a uma função puramente rítmica. Por detrás delas o mundo continua sua ruminação pachorrenta, indiferente à pontuação que elas lhes sobrepõem.

  (...) Em vez de articular espaços e figuras, Guignard tende a enfraquecer seus limites. No caso das montanhas, chega mesmo a dissolvê-las. O espaço se instila nos seres, retirando quase toda sua solidez. O aspecto lavado dos quadros decorre dessa infiltração lenta, e o mundo parece prestes a escorrer, como se o víssemos através de uma janela molhada. Convertida numa substância homogênea, a realidade se condensa aqui e ali em massas mais claras ou mais escuras, numa dinâmica singela e aquosa.
  Assim, aquilo que era apenas uma paisagem torna-se uma figuração de toda a natureza, com sua matéria primeira e seus movimentos de morosa diferenciação. Ao mesmo tempo essa natureza revela uma potência tímida.
  De algum modo ela parece fadada a uma existência atmosférica, avessa a momentos mais marcados. Desse modo, a natureza de Guignard também mostrará uma outra face: quase nenhuma predisposição para as ações que a retirem de seu repouso, dando-lhe forma e utilidade. Afinal, como envolver um meio tão lábil e propiciar-lhe um recorte?

  (...) Já que ela praticamente não admite sobre si atividades duras e transformadoras, por certo irá recusar toda a sociabilidade baseada em relações produtivas. Essas paisagens difusas e desabitadas pedem uma coletividade que mal arranhe suas superfícies; pedem intercâmbios amenos, tanto entre elas e seus eventuais habitantes quanto os próprios homens: algum extrativismo, caça, pesca etc. Aquilo que no Cubismo era mediação, aqui é proximidade. O mundo do trabalho e suas trocas não atraem a atenção de Guignard. Não por acaso seus quadros têm algo de primitivo - todas as formas mais fortes lhe desagradam.




  (...) Seu mundo tristonho, pulmonar, vive às voltas com uma luz interna, meio neoplatônica, que às vezes ameaça querer presidir todo o movimento dos seres, transubstanciando-os. Essa luz que ilumina de dentro a realidade enevoada de sua pintura traduz uma espiritualidade acanhada, que percebe laivos de vaidade no impulso de se afirmar, e portanto se recolhe, deixando a prova de sua hesitação nessa claridade turva, entre espírito e matéria.

  (...) As imagens que nos chegam são uma versão esmaecida de uma essência mais plena, de que a manifestação sensível não pode dar conta.

  A natureza que ele meio idealiza - e que surge no horizonte como uma esperança, como vislumbre de uma potência não violenta - se deixa entrever apenas em seu ocultamento. Tudo o que revela desagrada. Por ora está tudo em suspenso. Sabe Deus até quando."


Fragmentos de um ensaio lindo e sensível sobre Alberto de Veiga Guignard escrito por Rodrigo Naves.




quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Patinação

  "O admirável não é apenas que as roupas sejam tão belas, que os movimentos se desenvolvam com tanta harmonia: o admirável, principalmente, é que tudo isso deslize sobre patins. As figuras vêm de longe, velozmente, mas numa velocidade suave, silenciosa e feliz. Devíamos andar assim no mundo. Nossos trajetos deviam cruzar-se desse modo: sem choques nem pausas, com um desenho de cortesias que se entrelaçam delicadamente. E vem a ser justamente a mais adequada ao conjunto, como se a submissão à lei não lhe diminuísse o valor próprio mas, ao contrário, o salientasse e lhe revelasse imprevistos aspectos.
  Alguma coisa fugidia, apaixonada de distância e mistério existe no nosso coração, pela delícia que nos causam os movimentos dos patinadores retirando-se implacável e sutilmente, como um som que gradativamente se apaga, uma estrela que, inexorável, desaparece. Os patinadores vão sendo levados, num tempo mais profundo que o do seu bailado, absorvidos pelo ímã do horizonte, inalcançáveis e íntegros como deuses.
  Alguma coisa também deve existir em nós atraída pela resposta do eco, ansiosa de repercussões e espelhos, para nos encantarmos com os patinadores que se acercam e reconhecem e combinam seus abraços com esse perfeito ritmo em que confundem e recuperam sua unidade, aproximando-se e separando-se, livres e prisioneiros, deixando que se cumpra com rigor e graça a parábola de seus encontros e desencontros.
  Pensa-se que isto é uma distração frívola, e está-se diante da verdade do mundo, iluminado de outro modo, com algumas pessoas interpretando esta vida de cada dia, apenas alegoricamente.
  Alguma coisa deve existir em nós que se recusa a andar levitando entre as douradas estrelas: que ainda não se desprendeu totalmente da selva, da burla, do árido ensinamento do chão. Porque deste modo nos regozijamos com as presenças grotescas, e as formas inseguras, e o medo e o risco, a aventura talvez inábil do gesto incerto... Pode ser que não sejamos sempre desmesuradamente líricos: um prosaísmo pesado, espesso, talvez compense em banalidades rasteiras o ímpeto com que, outras vezes, nos atiramos a altas e inquietantes expedições...
  Mas é tudo sobre patins, num abrir e fechar de olhos, sem que mais nada nos detenha, porque já partimos, seguimos, continuamos, estamos sendo levados, pela nossa vontade e pela fatalidade deste escorregar por uma superfície gelada.
  Alguma coisa em nós deseja a solidão, a companhia da própria sombra, apenas, para assim nos emocionarmos com o dançarino isolado que se debruça para o seu reflexo, que em si mesmo se encontra, seus pés unidos perpendicularmente a seus pés, e assim vai, e volta, e não volta, fazendo o seu caminho no vazio, inventando um itinerário e uma direção.
  Mas alguma coisa nos atrai para o convívio e o colóquio, pois assim nos alegramos com a multidão festiva que se reúne e desdobra numa infinita coreografia, toda cintilante e entusiástica, depois de tantas provas acrobáticas, de tantas evoluções e tantos e tão variados arabescos.
  Sobre patins. Com essa rapidez que desejaríamos ter, que o nosso pensamento, o nosso coração desejam, e este nosso corpo fatigado não consegue possuir. Sobre patins. Num mundo sem esquinas, sem acidentes, com os espaços oferecendo-se à nossa passagem, e todos nós, cordiais e puros, realizando em sua plenitude o ideograma da nossa vida na clara página da existência. Sobre patins. Com a disciplina fluida de cada instante, de horizonte a horizonte, sem erro, temor nem desfalecimento!"


Cecília Meireles. 
  

domingo, 9 de setembro de 2012

"Portanto, a composição de um estado de espírito plástico não se baseia nas disposições dos gestos de figuras ou na expressão de olhos, de rostos, de atitudes, mas consiste na distribuição rítmica das forças dos objetos, dominadas e guiadas pela própria energia do estado de espírito que compõe a emoção. 
A conclusão disso é, assim, uma visão de arte em que o estado de espírito plástico não é mais a narrativa psicológica de um fato determinado, mas a síntese de uma emotividade ou drama universal de que nós também fazemos parte, como toda a realidade que nos envolve, isto é, do qual faz parte tanto "a dor de um homem" quanto "a de uma lâmpada elétrica, que sofre, e se atormenta, e grita com as mais dilacerantes expressões de cor."