quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"O Brasil no ar"



  "Sempre muito tristes as noites de São João de Guignard. O que se festeja, afinal, em meio a espaços tão vastos, que nos retiram o fôlego e a escala?

(...) Essa natureza tem cismas, pudores. Envergonham-na os extravasamentos, as manifestações cabais. O que lhe agrada é essa sedimentação lenta e continuada, a manter tudo em suspensão - um mundo de névoas, sem solo ou pontos de apoio firmes.


  Vem daí a impressão de imensidão que perpassa boa parte das paisagens de Guignard. Pois como encontrar dimensões num território tão imaterial, que parece pairar além das definições, e que agora é profundidade, instantes depois torna-se puro véu, para logo após transformar-se numa garoa fina, que dilui a consistência das coisas? Por isso a espacialidade de Guignard não tem nada de sublime, daquela natureza imponente que se desdobrava a perder de vista nas telas de Caspar David Friedrich, fazendo da amplidão um indicador de sua potência.

  (...) Essa impressão de uma imensidade relutante deriva também da relação que seu espaço estabelece com as coisas, sobretudo com a acidentada topografia das paisagens.

  (...) Não há nela uma volta à profundidade ilusionista, à perspectiva e suas exigências, embora suas situações sejam muito singulares. Não é para o fundo que nos puxa a pintura de Guignard. O que se impõe são essas espessuras incertas, uma espécie de respiração contida que nos envolve em seu moroso vaivém. E como essa cadência permanece irresolvida, resta correr os quadros de alto a baixo, na esperança de encontrar um apoio que possa sustentar formas mais estáveis, que deem direção e alguma ordem às obras. Em vão.


  (...) Apenas algumas pequenas figuras - balões, igrejinhas, palmeiras, homenzinhos, bandeiras - adquirem uma presença mais plena, que as pequenas dimensões reduzem a uma função puramente rítmica. Por detrás delas o mundo continua sua ruminação pachorrenta, indiferente à pontuação que elas lhes sobrepõem.

  (...) Em vez de articular espaços e figuras, Guignard tende a enfraquecer seus limites. No caso das montanhas, chega mesmo a dissolvê-las. O espaço se instila nos seres, retirando quase toda sua solidez. O aspecto lavado dos quadros decorre dessa infiltração lenta, e o mundo parece prestes a escorrer, como se o víssemos através de uma janela molhada. Convertida numa substância homogênea, a realidade se condensa aqui e ali em massas mais claras ou mais escuras, numa dinâmica singela e aquosa.
  Assim, aquilo que era apenas uma paisagem torna-se uma figuração de toda a natureza, com sua matéria primeira e seus movimentos de morosa diferenciação. Ao mesmo tempo essa natureza revela uma potência tímida.
  De algum modo ela parece fadada a uma existência atmosférica, avessa a momentos mais marcados. Desse modo, a natureza de Guignard também mostrará uma outra face: quase nenhuma predisposição para as ações que a retirem de seu repouso, dando-lhe forma e utilidade. Afinal, como envolver um meio tão lábil e propiciar-lhe um recorte?

  (...) Já que ela praticamente não admite sobre si atividades duras e transformadoras, por certo irá recusar toda a sociabilidade baseada em relações produtivas. Essas paisagens difusas e desabitadas pedem uma coletividade que mal arranhe suas superfícies; pedem intercâmbios amenos, tanto entre elas e seus eventuais habitantes quanto os próprios homens: algum extrativismo, caça, pesca etc. Aquilo que no Cubismo era mediação, aqui é proximidade. O mundo do trabalho e suas trocas não atraem a atenção de Guignard. Não por acaso seus quadros têm algo de primitivo - todas as formas mais fortes lhe desagradam.




  (...) Seu mundo tristonho, pulmonar, vive às voltas com uma luz interna, meio neoplatônica, que às vezes ameaça querer presidir todo o movimento dos seres, transubstanciando-os. Essa luz que ilumina de dentro a realidade enevoada de sua pintura traduz uma espiritualidade acanhada, que percebe laivos de vaidade no impulso de se afirmar, e portanto se recolhe, deixando a prova de sua hesitação nessa claridade turva, entre espírito e matéria.

  (...) As imagens que nos chegam são uma versão esmaecida de uma essência mais plena, de que a manifestação sensível não pode dar conta.

  A natureza que ele meio idealiza - e que surge no horizonte como uma esperança, como vislumbre de uma potência não violenta - se deixa entrever apenas em seu ocultamento. Tudo o que revela desagrada. Por ora está tudo em suspenso. Sabe Deus até quando."


Fragmentos de um ensaio lindo e sensível sobre Alberto de Veiga Guignard escrito por Rodrigo Naves.




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