sábado, 19 de janeiro de 2013


"É estranho estar cansado já na primeira hora, mas é isto que me põe no dia, a capa protetora de me saber cansado. Vou tentar falar disso com minúcia: quando acordo parece um enorme pesadelo, uma voz murmurando eu não mereço isto, ou eu preciso fugir daqui, ou alguma fantasia de façanha sexual, prêmio ou grana, enfim: suborno. Mas logo a minha voz parece a mesma de ontem, a minha cara é aquela de sempre e todo o mundo acredita, eu primeiro que todos, e deixo os meus segredos para um repasto bovino e solitário que acabo naturalmente esquecendo, escovo os dentes, visto o meu filho menor, despejo o leite na xícara do do meio. Então fico sozinho, ela ainda dorme, ela pode dormir sempre que quiser porque está convalescendo, então fico sozinho, a primeira manhã já passou, tenho apenas mais alguns minutos antes de entrar no palco e dar bom-dia a uma dúzia de pessoas. É então que meu cansaço vai subindo por minhas mãos, esponjosas por ele, desde o cheiro da tinta do jornal ou do sabor agudo da laranja. Ele soletra: anda, alongando o tempo dos meus passos, respira, diminuindo meu fôlego. E quando perguntam como vai eu respondo bem, mas na verdade sei que estou cansado, gordo do meu cansaço, inflado pelo gás viscoso do meu cansaço. Desempenho as minhas tarefas como um espião atuando em outro país, a serviço dele, desse forro duplo dentro da vestimenta onde carrego a mercadoria secreta da minha tristeza, da minha vontade de desistir.
Mais do que tudo, no entanto, meu cansaço me afasta dela. Ela que pode tudo (porque está convalescendo), só pode ser freada pela minha morte. Na ausência disso, por uma doença minha mais séria do que a dela. Na ausência disso pela minha raiva ou mau-humor (agudos, mas breves). Na ausência disso pelo meu cansaço. Posso deixar que fale de si mesma durante um mês inteiro, que quase tome o número necessário de medicamentos para morrer, que corte a própria pele durante o banho, tingindo a espuma de vermelho, que chore durante toda a tarde, acompanhando a queda do sol, que durma 48 horas seguidas porque estou cansado, estou muito cansado, há uma câmara de cortiça dentro de mim onde toda essa confusão se aquieta."


Meu cansaço, Nuno Ramos.

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