sábado, 27 de outubro de 2012

“Minha fantasma”, em Ensaio Geral, trata-se de um curto relato do artista plástico Nuno Ramos sobre os seis meses de uma crise de depressão severa da esposa, suas idas aos médicos, os cuidados, os horários de remédios, o cansaço e a impotência. É um texto lindo sobre “um amor imenso e cansativo, que deve dizer bem alto: eu quero você mesmo assim. Ou algo ainda antes disso, já que ela é a mesma pessoa, apenas confusa, como quem circula pela casa sem encontrar a porta do próprio quarto”

 Toda vez que leio esse texto de Nuno, penso em como deve ter sido, para ela, ter alguém tão constante, tão certo, tão leal, alguém que desconfiou de um determinado médico “não pelos motivos habituais (pêlos atrás da orelha, voz melíflua, olhar excessivamente demorado, roçar de uma palma da mão na outra). Achei, apenas, que não gostava dela”. 

 Um médico que, segundo ele, parecia ser alguém que tocava violino, como um judeu de Chagall. “Devia ter uma coleção enorme de selos e uma mãe severa. Devia raspar um prato fundo de caldo de carne com a gema de um ovo batido todas as manhãs, pra ficar bem forte. Mas na verdade é baixo e atarracado e suas pernas não se desenvolveram tanto quanto o tórax, e o próprio tórax não se desenvolveu tanto quanto as feições elásticas do seu rosto — por isso não pode esconder certa fração de paraplegia, de paralisia infantil, certa dessemelhança entre a metade de baixo e a metade superior do tronco, como um Tratado das Tordesilhas cravado em sua cintura que torna apenas mais perverso seu sorriso forçosamente bondoso.” 

 Não sei por quê, mas acho essa passagem do médico particularmente tocante — há uma solidariedade muda que perpassa o texto inteiro, preenchendo inclusive as lacunas do vazio. Por vezes, o autor hesita diante de tanto sofrimento e é arrastado pela maré da tristeza dela, mas continua ao seu lado dia após dia, enquanto ela chora e chora, “chora por ser covarde, chora principalmente porque não pode parar de chorar. Não há ventos fortes nem tufões, mas uma monotonia de laguna excessivamente salgada onde os peixes não conseguem sobreviver”, conta. “A cura não é o raio de sol depois da tempestade, nem uma lufada de ar no quarto pestilento, mas haver o quarto, e sol como o conhecemos, e vento como desde que somos pequenos. É o mundo ser redondo e o oceano ser salgado. Isso é a cura, o tédio bem-vindo. Então é isso que ela ataca e protela, voltando a alto-mar enquanto lhe acenamos da praia monótona.” 

 A certa altura, não estamos mais falando de depressão, mas de amor."


Vanessa Barbara.

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